TANIA LEDUR
Episódio 38 – Aspecto da nova civilidade o morrer 13.04.2025
Episódio 38 – Aspecto da nova civilidade: o morrer 2 Veremos no episódio de hoje sobre os rituais fúnebres que aconteciam nos 3 povoados missioneiros. Antonio, o que tens a nos dizer sobre isso? 4 Marisa, os Guarani possuíam uma relação com a morte que foi impactada pela 5 cosmologia cristã. De imediato, ao ingressar na redução, eles tiveram de 6 abandonar (ou pelo menos de não praticar diante dos missionários) os seus 7 rituais fúnebres, necessários para manter a alma de seus antepassados vivas e 8 com as devidas condições para que retornassem ao espaço cósmico de onde 9 teriam provindo ou para que pudessem reencarnar em novos corpos. Sim, 10 tradicionalmente, tanto antigamente como na atualidade, os povos Guarani 11 acreditam na reencarnação da alma. Esse foi e é um assunto importante para os 12 povos Guarani. 13 E como eram os costumes fúnebres ancestrais dos Guarani? 14 Os missionários deixaram alguns registros esparsos sobre os costumes fúnebres 15 ancestrais dos Guarani. O Padre Diego de Torres escreveu, na Carta Ânua de 16 1614, que um cacique de noventa anos já havia sido levado pelos seus para fora 17 da redução, estando ele à beira da morte, para que ali fosse enterrado à sua 18 maneira antiga, em um cântaro de barro, uma urna de barro dessas que as 19 pessoas chamam erradamente de ‘panelas de bugre’. O costume de enterrar os 20 mortos nesses cântaros é referido também pelo Padre Montoya. O missionário 21 acrescenta, no entanto, uma explicação para o tipo de tampa que colocavam na 22 urna funerária. Escreveu ele que os Guarani acreditavam que a alma 23 acompanhava o corpo falecido na sepultura, embora separada dele. Por isso é 24 que colocavam como tampa da urna uma espécie de prato para que ali a alma 25 pudesse ficar melhor acomodada. Já, na redução, ele via que, quando os 26 cristãos eram enterrados, uma velhinha tomava sua peneira e, disfarçadamente, 27 a agitava sobre a sepultura como se dali retirasse algo, na verdade, a alma do 28 falecido para que não fosse sufocada pela terra. Outro costume guarani ancestral 29 que muito incomodava os missionários era o choro copioso que acontecia nas 30 cerimônias fúnebres devido ser considerado um exagero na expressão dos 31 sentimentos, principalmente por parte das mulheres idosas. Tais mulheres, 32 nesses momentos, podiam gritar, arranhar-se, arrancar os cabelos, rodar pelo 33 solo, desnudar-se e, dando saltos, atirar flechas para o alto e em direção ao Sol, 34 conforme registro missionário de 1634. Aliás, os Guarani percebiam a morte 35 muito mais como obra do acaso do que como algo natural. Por fim, outro costume 36 mortuário referido na documentação missionária é o Kutipo, que era o hábito 37 que as mulheres possuíam de saltar, jogar-se do alto de alguma estrutura, 38 quando morria algum ente querido, de modo que muitas se machucavam ou até 39 morriam na queda. Certamente, tais rituais eram acompanhados de cantos- 40 dança comandados por seus líderes espirituais. A palavra hapirõ, registrada por 41 Montoya, significa choro, cantando-se coisa de dor, e indica ser uma espécie de 42 canto misturado com choro. Nas missões, foram inseridas orações católicas no 43 lugar desses cantos ancestrais. 44 Mas, como passaram a ser os rituais e os sepultamentos dentro das 45 missões jesuíticas? 46 Para caracterizá-los, nos servimos dos relatos de Gonzalo Doblas, que via, 47 mesmo após a expulsão dos jesuítas, a manutenção do costume funerário 48 estabelecido por aqueles missionários desde longa data nos povoados 49 missioneiros. Escreveu Doblas que os sepultamentos de adultos e de crianças 50 eram realizados pela manhã, após o término da missa, ou à tarde, antes ou 51 depois do rosário, a fim de que todos ou a maioria dos habitantes do povoado 52 pudessem assistir. O caixão com o morto era trazido até o alpendre da igreja – 53 podia também ser levado até a capela que ficava dentro do cemitério – por 54 parentes ou amigos. O caixão era coberto com pano preto e o morto era 55 embrulhado com tecido de algodão branco de modo que cobrisse o corpo todo. 56 O padre, acompanhado dos acólitos e músicos, realizava as orações alternadas 57 com música e o corpo seguia para o sepultamento. Poucas vezes eram feitas 58 vigílias e missas cantadas de corpo presente. Gonzalo Doblas ressalta ainda que 59 não via os indígenas preservarem qualquer ritos e aquilo que ele considerava 60 superstição anterior à cristianização, embora percebesse que, depois da morte 61 da pessoa e enquanto seu corpo permanecia em sua casa e também durante o 62 enterro, algumas indígenas idosas, parentes ou amigos próximos do falecido 63 choravam com uma espécie de tom ‘rouco e desagradável’, misturando algumas 64 palavras de sentimento. Mas isso não era comum em todos os que morriam, e 65 nem era tão barulhento que merecesse atenção – sinal de que os rituais 66 ancestrais ainda permaneciam na memória dos indígenas reduzidos! Ele 67 percebeu também que enquanto a terra era jogada sobre o corpo, chegavam 68 algumas mulheres carregando cabaças com água com a qual borrifavam a terra, 69 umedecendo-a. E quando a cova estava completamente cheia, os indígenas 70 colocavam água suficiente em cima até fazer lama, e cobriam tudo. Mas ele não 71 via nisso outra coisa senão a intenção de impedir que a terra se movesse 72 levantando poeira. Percebeu também que no topo da sepultura colocavam uma 73 pequena cruz de madeira e uma pequena placa com o nome da pessoa ali 74 sepultada, com o dia, mês e ano da sua morte. 75 E no presente, os povos Guarani ainda guardam seus rituais fúnebres 76 ancestrais? 77 Os estudos realizados pelo etnoarqueólogo Jorge Eremites de Oliveira são 78 elucidativos quanto a isso. Sua acuidade intelectual traz a resposta à pergunta 79 ao afirmar que “os Guarani e Kaiowá acreditam que possuem duas almas, uma 80 carnal, chamada de angue ou anguery, e outra espiritual, denominada ñe’e (...). 81 A alma carnal, cujo espectro permanece com o defunto, não deve ser lembrada 82 amiúde ou ter seu túmulo profanado por meio de escavações ou buracos feitos 83 por seres humanos e animais. Se isso acontecer, o angue virá à tona e trará más 84 influências à saúde e à convivência social dos membros da comunidade.” Tal é 85 o que vimos no episódio dos ossos analisado aqui na Série em um episódio 86 anterior! Por isso, fazem elaboradas cerimônias rituais visando o conforto tanto 87 do morto quanto dos familiares e da comunidade, das quais tive a oportunidade 88 de participar. 89 Espero que tenhas gostado do assunto tratado nesse episódio.
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