Em sua infância na cidade de Serrinha, o psicólogo Felipe Sancho, 38 anos, não tinha autorização para colocar no toca-discos os LPs que eram apreciados por seus familiares. "Isso era tarefa de gente adulta", lembra ele, que redescobriu o vinil por acaso aos 20 anos de idade, enquanto garimpava livros em um sebo de Salvador. O projeto gráfico de Elifas Andreato para o álbum Almanaque, de Chico Buarque, seduziu o então universitário que já era fã do cantor carioca, e decidiu naquele momento que levaria para casa o LP mesmo sem ter ainda onde tocar.
"De fato, é um almanaque, com calendário, horóscopo, brincadeiras, e A voz do dono e o dono da voz, que é uma das músicas de Chico", conta o psicólogo e ex-estudante de design, enquanto segura o álbum lançado em 1981, quatro anos antes de seu nascimento. O apelo do vinil fez com que Felipe comprasse outros álbuns que o encantavam pela música e pelo projeto gráfico, antes mesmo de adquirir uma vitrola.
Hoje, o psicólogo possui em torno de seis mil LPs, separados por gênero e, depois, dentro de cada estilo, por ordem alfabética. Bossa Nova, MPB, Jazz, Rock Progressivo, música erudita e trilhas sonoras de filmes. Os discos duplicados ele troca com amigos ou vende a preço de custo. "O preço de mercado é muito inflacionado. Eu não teria condições de fazer hoje, com o salário que ganho, uma coleção dessas. Só a tenho porque comprei a maioria dos discos antes de 2009", comenta o psicólogo.
Felipe, que começou a sua coleção aos 18 anos com aquele disco de Chico, foi aumentando o seu acervo à medida em que descobria as chaves para obter o som perfeito. Depois do primeiro aparelho, um 3 em 1 da Sanyo, ele comprou um sistema de som nas mãos de uma professora de piano, viúva de um audiófilo. E, finalmente, o seu equipamento atual, um Lincoln 75, de fabricação suíça, com o qual chega a escutar música por uma hora e meia antes de dormir, com luzes apagadas, sentado no sofá, com distância igual entre as caixas de som.
Tralha
Hoje, soa como coisa de gente rica, mas Felipe lembra que quando começou a sua coleção ele comprava discos por R$ 1. "O mais caro era R$ 5. Hoje, por esse preço, só os LPs que ninguém quer mesmo", destaca o psicólogo, que lembra de gente que lhe pedia para "levar essa tralha", como muitas pessoas se referiam aos discos em vinil.
Ainda hoje, é possível ver gente descartando ou catando LPs pelas ruas. Há até bicicletas com anúncio de "compram-se discos de vinil". O produtor musical Rogério Bigbross diz que já aconteceu de pedir ao motorista de táxi para encostar o carro a fim de que ele apanhasse um lote de LPs descartado na rua.
Mas o que faz a velha bolacha, que ainda é vista por alguns como um incômodo desnecessário, na época do Spotify e do YouTube, alcançar o status de relíquia em outros casos? Artistas de sucesso que nem eram nascidos quando o CD Player foi inventado não abrem mão de lançar seus novos trabalhos em vinil, alguns com edições para colecionadores. Há casos de artistas que lançam o mesmo LP com capas diferentes e uma faixa-extra em cada um deles.
Um relatório da Associação Americana da Indústria de Gravação apontou que em 2022 a venda de discos em vinil superou o comércio de CDs. Foram 41 milhões de "bolachas" contra 33 milhões de discos a laser. O que não ocorria desde 1987. Em 2023, foram 43 milhões de LPs contra 37 milhões de CDs.
Mas isso não significa muita coisa, na verdade. É como se 10% da população americana comprasse um LP por ano. E a performance superior à outra mídia pode ter muito a ver com as dificuldades tecnológicas. "Você não encontra mais computadores ou painéis de carros com CD player", lembra Big.
E mesmo quanto à qualidade sonora, o produtor musical relativiza a superioridade do vinil. "A galera de música clássica que eu conheço prefere o CD pela pureza do som. Eles querem ouvir notas, não o chiadinho", afirma o produtor. O primeiro emprego de Rogério Bigbross foi em uma loja de vinil, em 1991. A Bazar Musical, que ficava no Orixás Center. Nessa época, o rapaz de 21 anos já tinha uma coleção de discos de heavy metal e punk, os estilos musicais que estão intrinsecamente ligados à sua carreira de produtor musical.
Big destaca que comprar vinil não era barato. "Um adolescente como eu comprava um ou dois discos em um mês. Os LPs nunca foram baratos", afirma o produtor, que também é dono da Big Bazar, loja especializada em vinil no Shopping Colonial, nos Barris.
Sobre os preços dos discos, havia exceções. Como os discos de heavy metal, foco de interesse de Big, feitos por empresas brasileiras. "Esses discos eram vendidos no Paes Mendonça por 3 mil cruzeiros, enquanto um de Roberto Carlos saía por 15 mil cruzeiros", ilustra Big. E foi com gravadoras subvalorizadas, como a Brasidisc e a Imagem, que o produtor descobriu o blues, o jazz e o rockabilly.
"Esses discos eram feitos aqui de maneira quase pirata, porque não havia um controle. E eram discos baratos em todas as lojas, na Aky Discos, em A Modinha, no Paes Mendonça, na Sandiz, na Mesbla. Mas ninguém tinha dinheiro para comprar cinco LPs em um mês. Era caro".
Ouvir música na vitrola não era trivial na maioria das casas. "Quando eu era criança, os LPs eram escutados no final de semana. Durante a semana, era a rádio", recorda Big, pontuando que normalmente as estações de AM e FM só eram trocadas pelas bolachas de vinil na hora da feijoada de domingo ou no momento de lavar o carro da família, sempre em ocasiões especiais.
Mas ele admite que hoje está muito mais difícil fazer uma coleção de discos em vinil porque as relações mudaram. "Um disco desses que eu disse que comprava barato saía com pelo menos dez mil cópias. Hoje, o disco novo de Marisa Monte sai com 300 cópias", pontua o produtor.
Um aspecto que deve ser levado em conta por quem compra discos de vinil como investimento é que ter LPs em casa não significa automaticamente uma posse de tesouros. Para que um LP seja considerado uma preciosidade é preciso de uma série de fatores, desde o estado de conservação do disco, da capa e do encarte, da quantidade de cópias existentes no mercado, de detalhes, como um eventual autógrafo do artista, se a gravação foi mono e de onde o disco foi prensado.
"No Brasil, há LPs muito ruins, o som do CD e do Spotify, nesses casos, é melhor", concede o psicólogo Felipe Sancho. Mas ele ressalta outro efeito do LP. "Foi a partir do vinil que comecei a ouvir a obra completa. O CD traz muitas coletâneas", explica o psicólogo, que também aponta a facilidade do CD para pular as faixas com o controle remoto como um fator que inibe o mergulho do ouvinte no conceito completo de um álbum.
Memória afetiva
Foi esse deleite em ouvir o disco inteiro um dos fatores que levaram a administradora de empresas Fran Fragas a abraçar o vinil, além da memória afetiva dos discos que sua família mantinha na sua infância em São Sebastião do Passé. "Eu sempre gostei muito do colecionismo, sempre fui ligada à música. A música é algo que me desconecta da realidade, da situação do mundo", explica a administradora, que mantém dois perfis no Instagram. Em @discosdafran, ela faz comentários sobre o que está ouvindo e em @fran_lojinha&disqueria ela compra, vende e recebe discos doados. Ela nem conta quantos discos tem em casa. "Só sei que são muitos", brinca Fran, que ontem organizou a sua primeira feira de discos, no Shopping Rio Vermelho.
Fã de artistas como Björk, Kylie Minogue e Xuxa, o corretor de imóveis Cleonilson Júnior fez a contagem de seu acervo. São 740 LPs guardados em casa, alguns sendo exemplares de colecionadores, desses com conteúdo similar e capas diferentes. Ele chega a passar duas horas em uma loja de discos em vinil garimpando preciosidades. Na viagem que fez a Las Vegas (EUA), em novembro passado, foram cerca de oito horas em quatro lojas ao longo de um dia. "Eu voltei com 30 LPs na bagagem", declara o corretor, que só evita passar tanto tempo em lojas de vinil quando viaja em grupo e tem que negociar a programação de passeios.
No mesmo Shopping Colonial, onde Big trabalha, o arquiteto Eldo Batista mantém a Discodelia, com seu sócio Igor Faria há dois anos, depois que perdeu o emprego. Músico desde a adolescência, Eldo teve sua primeira coleção musical em CDs. Até ganhar um LP de presente da esposa em 2018 e ter um clique: "Percebi que havia álbuns que só foram lançados em vinil e não em CD. E teve também a coisa da imagem. Com o tempo, acabei me apaixonando".
Entre os seus xodós, está uma nova edição do LP Identidade, de Ederaldo Gentil, com um poster do artista e texto do cantor e compositor baiano Paquito. "Esse álbum sai por R$160, porque é uma reprensagem. Se fosse original, seria R$ 200”.
A depender das necessidades do comprador de discos a conta pode ficar alta. Uma agulha de toca-discos pode custar R$ 3 mil, no caso de quem trabalha como DJ e precisa de instrumentos, digamos, de ponta. Mas na maioria das vezes não é preciso gastar tanto. A menos que o interessado em vinil seja um audiófilo, quem lida comercialmente com LPs afirma que a melhor opção de equipamento pode ser mandar consertar aquele velho 3 em 1, encostado em algum canto da casa.
"Os aparelhos da Gradiente são uma boa alternativa, porque na hora do conserto é mais fácil encontrar peças de reposição. E um 3x1 pode ser comprado por R$ 400", recomenda o técnico em eletromecânica David Grassi, 48 anos, um aficionado por música que perdeu o trabalho durante a pandemia e abriu a loja virtual Retro Wave Discos, especializada em pop rock dos anos 80 e 90. "É um gênero que não tem muitos fãs recentes. Um pessoal da minha faixa etária, que já tem filhos, trabalha e estuda, não tem muito tempo de fazer o garimpo", explica Grassi, que envia o material adquirido por via postal.
Um de seus clientes é um cidadão dos Estados Unidos que descobriu a loja virtual em suas pesquisas pela Internet, mas não busca exatamente música brasileira. "Ele é fã da banda Nine Inch Nails e compra tudo o que sai da banda em outros países", explica Grassi.
Nesse mercado, é possível encontrar o LP duplo Creatures, da banda neerlandesa Clan of Xymox, por R$ 600. O disco, importado, é valorizado pela informação de que foram prensadas apenas 500 cópias e de que esse é o único exemplar disponível no Brasil.
O preço de um LP raro pode assustar, mas certamente não é a venda de discos que engorda a conta bancária dos artistas. Com seu LP Abafabanca, lançado este ano, o produtor musical e DJ Ubunto não declara quantas cópias foram prensadas, por razões contratuais, mas confirma que foi uma edição limitada. Apesar disso, o artista se declara otimista com o setor. "É um mercado que tende a se valorizar, tanto a produção física de discos quanto a pesquisa de LPs antigos estão crescendo", pontua Ubunto.
Radicado em São Paulo, o artista baiano ressalta que além das razões mercadológicas, como o comércio de discos raros, o crescimento do interesse pelo vinil pode ser percebido por motivos alheios à música. "Virou artigo de decoração também. Tem gente que compra LPs porque acha bonito mas nem tem vitrola", pontua o músico.
O mercado de discos de vinil estabeleceu uma gradação na avaliação para facilitar a cotação dos LPs. Um álbum pode ir de mint, quando atende todos os critérios de valorização, a poor, na outra extremidade. Esses podem ser achados por R$10. Mas um disco que seja considerado raridade absoluta, como o primeiro álbum fracassado de um artista que estoura depois, é chamado de "mosca branca", e aí quem o possui pode estipular o preço que quiser.
Fonte: portal A TARDE.