Episódio 25 A ‘policía’ cristã nas reduções 12.01.2025
Episódio 25 - A ‘policía’ cristã nas reduções [lê-se policía e não polícia]
A partir desse episódio do Campeando as Origens, entraremos no cotidiano das reduções guarani-jesuíticas. E hoje o assunto é sobre um termo que aparece constantemente na documentação missionária, que é a ‘policía. Antonio, por que você escolheu tratar sobre esse assunto no episódio de hoje?
Olá, Marisa! De fato, a expressão ‘policía’ é constantemente utilizada pelos jesuítas em seus escritos, principalmente os do século XVII. Por vezes neles aparece somente a palavra ‘policía’, mas na maioria das vezes ela é acompanhada do adjetivo cristã, política e também natural. Nossa intenção é entender o contexto no qual essas palavras foram utilizadas a fim de bem analisarmos o choque civilizacional acontecido no interior das missões religiosas com os indígenas.
Mas, qual o significado dessas expressões? O que elas representam para as reduções indígenas?
Primeiramente, vamos ao significado da expressão. A palavra policía provém de pólis, a cidade grega, e tem a ver com a organização da vida em sociedade, com a organização mesma das relações sociais nos povoados criados pelos missionários. Certamente, as relações que se buscava implantar nesses povoados eram baseadas na moral católica ou no modo de ser cristão. Assim, mais do que simplesmente viver em sociedade, em policía política, a intenção dos jesuítas era que os indígenas organizassem o seu cotidiano seguindo o tempo litúrgico cristão, num espaço cristão, com costumes cristãos, isto é, vivessem em policía cristã, internalizando o controle ocidental externo e o transformando em autodisciplina.
Mas, embora de forma diferente, os indígenas já viviam em sociedade antes da chegada dos missionários, isto é, eles já possuíam ‘policía política’. É isso mesmo?
Se fôssemos analisar somente através do ponto de vista da vida em sociedade, diríamos que sim, mas na perspectiva dos missionários, não! Eu explico melhor a partir de sua documentação histórica. Os jesuítas escreveram, em 1627, por certo de forma bastante negativa, que os Guarani não tinham “de seu natural nem fé, nem lei, nem rei e nem jamais obedeciam a seus próprios caciques, nem aos próprios pais, exceto naquilo que lhes agradava. E que era coisa dificílima incliná-los à obediência, pois ela era totalmente contrária à sua inclinação natural, mas que era necessária para a lei evangélica como um de seus principais fundamentos.” Para que isso fosse mudado, os missionários escreveram que era necessário colocá-los em alguma ‘polícia e modo de viver como homens’, sendo necessário instituir, para isso, castigos físicos, algo que era desconhecido de suas práticas sociais ancestrais. Em outras palavras: se os indígenas possuíam alguma vida social antes das missões religiosas, os jesuítas não a reconheciam, uma vez que não seriam, no seu entender, próprias de seres humanos. Por certo, os missionários trouxeram uma concepção de ser humano e de relacionamento humano bem específica, seguindo o modelo de cristandade própria da Europa, na qual o controle social, a vida sob o poder de um rei, o seguimento a um código de leis e à religião cristã eram centrais.
Antonio, conversa vai, conversa vem, sempre surge o debate teológico sobre a humanidade dos indígenas. Vamos conversar sobre isso?
De fato, infelizmente esse assunto tem gerado muitas controvérsias ao longo da história do cristianismo. O que podemos dizer é que o contato dos europeus com pessoas de outras culturas durante o período colonial, acontecido na passagem da idade média para a idade moderna, trouxe consigo esse debate, ademais pelo fato dos europeus tomarem a si mesmos como modelo de humanidade e julgarem os demais povos a partir dele. E isso não foi diferente com os jesuítas. Hoje não temos dúvida alguma acerca da humanidade indígena, mas nem sempre foi assim.
De forma recorrente, na implantação do projeto reducional, eles julgaram negativamente algumas práticas culturais ancestrais indígenas, como a antropofagia ritual. Por exemplo, na carta ânua de 1626, os missionários fazem uma afirmação nesse sentido, dizendo que os indígenas, quando contatados por eles, teriam de homens somente a figura, pois seus costumes eram mais próximos do modo de ser dos animais. Nesse contexto, o padre Maceta fará uma afirmação igualmente controversa ao afirmar que a intenção dos missionários era primeiramente transformar os indígenas em homens para, em seguida, cristianizá-los. Porém, os mesmos missionários percebem que os povos indígenas não eram todos iguais. Um exemplo disso é o que escreveu o padre Ferrer em 1633 a respeito dos Itatines, segundo o qual aquele povo não diferia dos demais Guarani, embora tivesse mais trato e policía que eles.
O que se sabe é que, com o passar do tempo, os jesuítas percebem que os indígenas não perdiam em nada para os europeus, pois possuiriam grande capacidade de aprender atividades complexas assim como aqueles. Por exemplo, os indígenas da região de Assunção, como dito em um informe de um jesuíta de 1620, eram capazes de qualquer boa aprendizagem e polícia, como se via por experiências nas reduções, onde, diz o missionário, se tinha cuidado do seu cultivo, porque aprendiam bem a ler, escrever, cantar, dançar, tocar instrumentos, flautas, chirimias, além de ofícios mecânicos. Da mesma forma, sobre a redução dos Mártires de Caaró, os missionários escreveram, em 1635, que os indígenas do lugar ‘Começavam também a ter policía cristã, pois tinham seu povoado muito bem composto, limpo e asseado e suas casas da mesma maneira, ainda que isso pudesse ser contrário ao seu natural modo de ser.’ Aqui policía significava viver nos moldes europeus.
Esses exemplos mostram não somente um julgamento da cultura ancestral indígena, mas uma intenção de modifica-la, inserindo os nativos em uma nova racionalidade. Nos próximos episódios vamos analisar em profundidade os relatos dos missionários sobre a cultura guarani.
Espero que tenhas gostado do assunto tratado nesse episódio. Até o próximo. Aguyjevete. Obrigado!
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